Tema 1:
O espelho
Engulo em seco.
Não sei o que é que me deu na cabeça para meter aqui os pés.
Estou cansada e confusa. Os últimos dias ainda estão bastante nublados na minha cabeça.
Olho em frente e fixo as paredes de pedra desta casa majestosa. Embora as plantas trepadeiras cubram a maior parte da fachada, há algo nela que me atrai. Consigo discernir alguns buracos na parede, resultantes dos anos de existência e da falta de manutenção. O abandono fez-lhe mal.
O crocitar de um corvo assusta-me. Observo o pássaro segundos antes de pousar numa grande chaminé parcialmente destruída. Junto ao telhado, há uma janela circular, cujos vidros estão também partidos.
Sinto os braços arrepiados. O outono chegou agreste. Aconchego o casaco de malha ao corpo e subo o primeiro degrau.
Alcanço a imponente porta rústica e levo a mão ao puxador, reparando de imediato numa frincha. A porta não fecha bem.
Empurro-a. O som agudo das dobradiças causa-me um novo arrepio. O corvo volta a crocitar lá no céu. Um mau presságio.
O interior da casa é quase tão decadente como o exterior. O chão está coberto de entulho, a tinta das paredes parece ter sido arrancada com as unhas, os móveis encontram-se escondidos por debaixo de uma camada de pó e as plantas entram pelas janelas e buracos das paredes, continuando a crescer livremente.
Caminho com cuidado, procurando não tropeçar em nada. A iluminação é fraca, conferindo à casa um tom soturno.
Não me demoro muito no piso inferior. Aproximo-me da enorme escadaria, utilizando a lanterna do telemóvel para iluminar o caminho.
Não sei exatamente o que estou aqui a fazer, mas algo me impele a continuar.
À medida que subo as escadas, a escuridão adensa-se. Aponto a lanterna, na tentativa de descortinar o caminho.
Viro à direita e percorro um longo corredor. Sei que estou a seguir o caminho certo, pois comecei a ouvir vozes a sussurrar.
Detenho-me junto a uma porta. As vozes subiram de tom, parecem uma algazarra.
Incerta daquilo que irei encontrar do outro lado, preparo-me para abrir a porta. Contudo, como se pressentisse a minha presença, ela abre-se sozinha, deslizando silenciosamente para o interior.
Nesse exato momento, duas coisas acontecem em simultâneo: as vozes calam-se e o meu telemóvel falha, apagando-se. Fico mergulhada no mais completo silêncio, na mais devastadora escuridão.
O meu coração pulsa apressado e sinto-me prestes a desfalecer. Estou tão cansada que nem consigo sentir medo.
Dou um passo em frente. Os meus olhos começam a habituar-se ao negrume e sou capaz de perceber que a sala está completamente vazia. Ou quase.
Após caminhar alguns passos, deparo-me com uma parede retangular, ao centro. Toco-lhe com a mão e a sua textura áspera e rugosa magoa-me a ponta dos dedos. De imediato, a parede desvanece-se e outra coisa aparece à minha frente.
Um espelho.
Uma ténue luz cor de âmbar reflete-se do seu interior, iluminando o espaço à minha volta. A seguir, surge o meu reflexo.
Só que a mulher que vejo não sou exatamente eu. Ela tem o cabelo desgrenhado e a cara deformada. Fios de sangue começam a escorrer-lhe de um golpe na testa.
E nesse momento sinto a dor.
A tremer, levo a mão ao rosto e tateio uma substância quente e pegajosa.
O sangue é meu.
O que se passa? O que está a acontecer-me? Onde estou? Quem sou eu? Porque é que não me lembro de quem sou?
Sinto o pânico a apoderar-se de mim.
Continuo a fixar o estranho reflexo no espelho e vejo surgirem outros cortes no meu rosto, que agora sangra com mais intensidade.
— O que é que me está a acontecer? — grito para a escuridão, para o nada.
De repente, a imagem do espelho muda. Vejo uma outra mulher. Vem de mãos dadas com um homem. Ambos parecem bastante serenos, felizes.
— Vem connosco — diz a mulher. Parece a voz de um anjo.
Nesse momento sinto uma nova pontada de dor. Levo a mão ao abdómen, onde também estou golpeada. E é então que os reconheço.
— Mãe? Pai?
Não é possível. Sou órfã desde os dezasseis anos. Estou ferida, devo estar a alucinar.
A imagem volta a mudar. Desta vez é um jovem que me sorri e me estende a mão.
— Não, não pode ser — sussurro, abanando a cabeça em negação.
Tenho tantas saudades do meu irmão.
Sinto-me cada vez mais fraca. Continuo a perder sangue abundantemente e a cabeça lateja-me. Quase não consigo manter os olhos abertos.
As lágrimas escorrem-me pelo rosto, causando uma estranha mistura de sangue e sal.
Quando a imagem volta a mudar, recuo, incapaz de enfrentar aquilo que sei que vem a seguir. Não quero olhar. Não posso.
Mas ela vem sem pedir permissão. O homem que surge no espelho também tem a mão estendida, chamando-me.
— Vem, estamos à tua espera.
O meu coração explode e perco a forças nas pernas. Caio desamparada no chão pegajoso do sangue que me foge das veias.
O seu sorriso continua a ser a coisa mais maravilhosa que tive na minha vida. Há três dias, o meu marido estava deitado num caixão. Não consigo enfrentar esta nova realidade.
Estou sozinha no mundo. Não tenho ninguém.
Cravo as unhas no chão e choro. Uivo de dor. Os meus soluços são tão selvagens que acabo por perder a pouca força que me resta. Deixo cair a cabeça no chão.
Antes de perder a consciência, oiço, muito ao longe, as gargalhadas de uma criança.
— Mamã?
E é nesse momento que me recordo. Não estou sozinha. Tenho uma filha.
***
— Minha senhora? Consegue ouvir-me?
Oiço uma voz diferente. Uma que não reconheço.
Abro devagar os olhos. A luz fere-me a vista. Vejo uma cara diante de mim. Porque é que o homem está com a cabeça virada para baixo? Parece pendurado.
Arquejo quando me invade a dor vinda de várias partes do corpo. Sinto algo pegajoso colado às pestanas e a minha boca sabe a ferro. O que se passa?
Distingo outras vozes ao fundo. Oiço palavras dispersas: piso escorregadio, viatura capotada, equipa de desencarceramento.
Estou confusa. O que aconteceu?
— Minha senhora? Vamos tirá-la daí. Está quase. Aguente só mais um pouco.
Aceno levemente com a cabeça e olho em frente pelo vidro da viatura. As paredes de uma casa abandonada parecem desvanecer-se, ao longe.
Um corvo levanta voo e perde-se no ar.
Ficou um conto bem sombrio :).
ResponderEliminarGostei muito e com vontade de saber o que aconteceu depois. Morreu ou sobreviveu? Aquele corvo é mau sinal!
Beijinhos
Obrigada. Eu acho que ficou estranho!
EliminarEstava destreinada e ainda custou a arrancar. Talvez os próximos saiam mais ao meu gosto.
A ideia era ela sobreviver. A casa foi uma espécie de alucinação, uma passagem para o outro lado, mas quando se recordou da filha, ganhou forças para lutar e sobreviver. Depois no fim ela vê a casa a desaparecer porque na verdade a casa nunca esteve lá. Pelo menos foi essa a ideia que eu tentei transmitir. :)
Beijinhos
Não estava à espera daquele final. Gostei muito.
ResponderEliminarA casa, seria uma memória de infância? Quero saber :)
Já estou pronta para ler o teu próximo conto :)
Beijinhos
Obrigada! :D
EliminarEu imaginei a casa como uma espécie de passagem para o outro lado, mas quando a personagem está prestes a desistir e se recorda da filha, percebe que ainda tem um motivo para viver e luta para sobreviver. Pelo menos essa foi a ideia que eu tentei transmitir! :)
Também estou muito curiosa por ver as participações do segundo tema!
Beijinhos
Uau, que viagem, que conto! Vagueamos pelas memórias da protagonista, por estas descrições magníficas, e mergulhamos neste suspense tão bem construído. :)
ResponderEliminarO final é o regresso à realidade.
Parabéns, gostei muito!
Um beijinho,
Elisabete.
Muito obrigada! Fico mesmo contente que tenhas gostado. Admiro-te imenso e adoro todas as tuas dicas de escrita criativa, pelo que é muito bom conhecer a tua opinião em relação ao que escrevo!
EliminarBeijinho :)