Tema 2:
O estranho
Ele olha-me fixamente, sentado junto ao balcão da pastelaria.
Já o vi antes a rondar o apartamento. É por isso que o reconheço de imediato. É tão ruivo que parece que tem um fogo a arder em cima da cabeça.
Enfrento-o. Prendo o meu olhar no dele, tentando fazer a minha melhor expressão desafiante, tentando não demonstrar medo. Não posso entrar em pânico. Não agora. Não aqui.
Parece ter resultado porque ele desvia a atenção. Suspiro de alívio e termino o café. Limpo as migalhas do bolo de arroz que ainda persistem nos cantos da minha boca e volto a olhar na direção do balcão. Estremeço.
Ele está novamente a fixar-me. Que raio pretende de mim?
Não devia ter saído de casa.
O meu coração faz ruído dentro do meu peito. Levanto-me depressa e agarro a bolsa. A alça está presa nas costas da cadeira e, ao puxá-la com força, ela revira-se e metade do seu conteúdo cai ao chão num grande estrondo. Agacho-me e apresso-me a apanhar todos os meus pertences. Estou a tremer.
Retiro cinco euros da carteira e deixo a nota em cima da mesa, saindo tempestuosamente dali.
Mesmo antes de virar a esquina, consigo ver pela janela que o homem também se levantou e se aproxima da saída.
Oh meu Deus, ele vem mesmo atrás de mim.
Apresso o passo, apertando a bolsa bem junto ao corpo.
Não devia ter saído de casa. Não devia ter dado ouvidos à minha terapeuta. Disse-me que não era normal ficar quatro meses fechada em casa e que algum dia teria de enfrentar o mundo. Comece com algo pequeno, dissera, vá ao supermercado, vá lanchar a uma pastelaria, visite a biblioteca. O que raio sabe ela? Segui o seu conselho e agora estou a ser perseguida. Vai tudo repetir-se outra vez.
Enquanto caminho, vou olhando para trás. Não o vejo. Terá desistido? Ou seguiu por algum atalho para me surpreender?
Esse pensamento alarma-me. Onde estará ele?
Viro à direita. É então que o vejo lá atrás a dobrar a esquina. Sem pensar duas vezes, desato a correr. Ainda posso despistá-lo.
As pernas tremem-me e sinto-me ofegante. Quase não consigo respirar. As pessoas olham para mim como se eu fosse louca.
Falta-me apenas uma rua, mas já vejo a fachada do meu apartamento. Estou quase lá.
Olho para trás e vejo que ele ganhou balanço. Está a correr. Atrapalho-me e quase caio.
Chego à porta do prédio, encontro-a entreaberta e entro de rompante. Atiro-a para trás com força para que se feche.
Estou quase em segurança. Paro em frente ao elevador e carrego no botão. Ao olhar para a rua, o coração quase me salta do peito. O homem está parado junto ao prédio. Ele não vai entrar, pois não? Não pode, precisaria das chaves.
Ainda não estou em segurança. Desisto de esperar pelo elevador e corro escadas acima. São dezenas até ao terceiro andar, mas eu sou capaz. Tenho de ser.
Quando chego lá acima, o meu coração parece estar num campeonato de saltos acrobáticos.
Faço mais um esforço e percorro o corredor até à porta do meu apartamento. Debruço-me sobre a minha bolsa e procuro as chaves.
É nesse momento que oiço a campainha do elevador. Sinto-me gelar. Olho naquela direção e, quase em câmara lenta, vejo as portas a abrirem-se. Fico petrificada quando uma cabeleira ruiva sai de lá de dentro.
Este é o meu pior pesadelo.
Continuo a vasculhar a bolsa. Onde raio meti as chaves?
A sola dos seus sapatos ecoa pelo corredor à medida que ele se aproxima. Estou tão consciente desse barulho como das gotas de suor que me escorrem pelas têmporas.
— Desculpe, perdeu as chaves?
Estou tão alterada que nem entendo as suas palavras. Decido agir. Desta vez, vai ser diferente, serei capaz de me defender.
Viro-me e fito-o corajosamente. À minha frente só vejo sangue. Vejo os rufias a rodearem-me e a navalha a espetar-se na minha barriga.
Atiro-me a ele, apanhando-o de surpresa, e borrifo-o com o spray de pimenta que retirei da bolsa.
Ele grita e dá um passo atrás, levando as mãos à cara.
— Mas que raio! Porque é que fez isso? — pergunta.
— Afaste-se de mim!
— Só lhe perguntei se perdeu as chaves. — Ele leva a mão esquerda ao bolso, tira umas chaves ruidosas e atira-mas. — Deixou-as cair na pastelaria. Vim atrás de si para as devolver.
Fico a olhar para as chaves, exatamente aquelas que me fartei de procurar em vão dentro da bolsa.
Engulo em seco. Agora sinto-me extremamente envergonhada pelo que fiz.
O homem encosta-se à parede e desliza para o chão, sentando-se. Continua a tapar os olhos com as mãos.
Retiro uma garrafa de água da bolsa e estendo-lha.
— Use isto. Pode ser que ajude — digo, sentando-me ao seu lado.
Fico a vê-lo lavar os olhos com os dedos molhados. Parece-me abatido, e não apenas por ter acabado de ser atacado.
Há, contudo, uma questão que não me sai da cabeça.
— Como conseguiu entrar no prédio?
Ele olha para mim. Tem os olhos vermelhos mas já os consegue entreabrir.
— Moro aqui. — E aponta para a porta em frente à minha.
Fico boquiaberta. Não consigo acreditar que este homem é o meu vizinho do esquerdo, com quem eu nunca me tinha cruzado.
— Imagino que tenha ficado assustada quando a olhei fixamente no café — acrescenta.
— Sim — admito, em voz baixa.
— Peço desculpa. Não o devia ter feito. É só que… — hesita, como se lhe custasse falar do assunto. — Acho-a parecida com a minha noiva. Ela abandonou-me no dia do nosso casamento. Faríamos hoje um ano de casados. — Outra pausa. — Às vezes, parece-me que a vejo em todo o lado.
Olho-o em silêncio. Tenho andado tão centrada na minha dor, nos meus medos, na minha incapacidade de combater o pânico, que me esqueço que as outras pessoas também têm as suas cicatrizes.
Devagar, coloco a mão por cima do ombro dele. Puxo-o para mim. Acho que ele está a precisar de um abraço.
Já o vi antes a rondar o apartamento. É por isso que o reconheço de imediato. É tão ruivo que parece que tem um fogo a arder em cima da cabeça.
Enfrento-o. Prendo o meu olhar no dele, tentando fazer a minha melhor expressão desafiante, tentando não demonstrar medo. Não posso entrar em pânico. Não agora. Não aqui.
Parece ter resultado porque ele desvia a atenção. Suspiro de alívio e termino o café. Limpo as migalhas do bolo de arroz que ainda persistem nos cantos da minha boca e volto a olhar na direção do balcão. Estremeço.
Ele está novamente a fixar-me. Que raio pretende de mim?
Não devia ter saído de casa.
O meu coração faz ruído dentro do meu peito. Levanto-me depressa e agarro a bolsa. A alça está presa nas costas da cadeira e, ao puxá-la com força, ela revira-se e metade do seu conteúdo cai ao chão num grande estrondo. Agacho-me e apresso-me a apanhar todos os meus pertences. Estou a tremer.
Retiro cinco euros da carteira e deixo a nota em cima da mesa, saindo tempestuosamente dali.
Mesmo antes de virar a esquina, consigo ver pela janela que o homem também se levantou e se aproxima da saída.
Oh meu Deus, ele vem mesmo atrás de mim.
Apresso o passo, apertando a bolsa bem junto ao corpo.
Não devia ter saído de casa. Não devia ter dado ouvidos à minha terapeuta. Disse-me que não era normal ficar quatro meses fechada em casa e que algum dia teria de enfrentar o mundo. Comece com algo pequeno, dissera, vá ao supermercado, vá lanchar a uma pastelaria, visite a biblioteca. O que raio sabe ela? Segui o seu conselho e agora estou a ser perseguida. Vai tudo repetir-se outra vez.
Enquanto caminho, vou olhando para trás. Não o vejo. Terá desistido? Ou seguiu por algum atalho para me surpreender?
Esse pensamento alarma-me. Onde estará ele?
Viro à direita. É então que o vejo lá atrás a dobrar a esquina. Sem pensar duas vezes, desato a correr. Ainda posso despistá-lo.
As pernas tremem-me e sinto-me ofegante. Quase não consigo respirar. As pessoas olham para mim como se eu fosse louca.
Falta-me apenas uma rua, mas já vejo a fachada do meu apartamento. Estou quase lá.
Olho para trás e vejo que ele ganhou balanço. Está a correr. Atrapalho-me e quase caio.
Chego à porta do prédio, encontro-a entreaberta e entro de rompante. Atiro-a para trás com força para que se feche.
Estou quase em segurança. Paro em frente ao elevador e carrego no botão. Ao olhar para a rua, o coração quase me salta do peito. O homem está parado junto ao prédio. Ele não vai entrar, pois não? Não pode, precisaria das chaves.
Ainda não estou em segurança. Desisto de esperar pelo elevador e corro escadas acima. São dezenas até ao terceiro andar, mas eu sou capaz. Tenho de ser.
Quando chego lá acima, o meu coração parece estar num campeonato de saltos acrobáticos.
Faço mais um esforço e percorro o corredor até à porta do meu apartamento. Debruço-me sobre a minha bolsa e procuro as chaves.
É nesse momento que oiço a campainha do elevador. Sinto-me gelar. Olho naquela direção e, quase em câmara lenta, vejo as portas a abrirem-se. Fico petrificada quando uma cabeleira ruiva sai de lá de dentro.
Este é o meu pior pesadelo.
Continuo a vasculhar a bolsa. Onde raio meti as chaves?
A sola dos seus sapatos ecoa pelo corredor à medida que ele se aproxima. Estou tão consciente desse barulho como das gotas de suor que me escorrem pelas têmporas.
— Desculpe, perdeu as chaves?
Estou tão alterada que nem entendo as suas palavras. Decido agir. Desta vez, vai ser diferente, serei capaz de me defender.
Viro-me e fito-o corajosamente. À minha frente só vejo sangue. Vejo os rufias a rodearem-me e a navalha a espetar-se na minha barriga.
Atiro-me a ele, apanhando-o de surpresa, e borrifo-o com o spray de pimenta que retirei da bolsa.
Ele grita e dá um passo atrás, levando as mãos à cara.
— Mas que raio! Porque é que fez isso? — pergunta.
— Afaste-se de mim!
— Só lhe perguntei se perdeu as chaves. — Ele leva a mão esquerda ao bolso, tira umas chaves ruidosas e atira-mas. — Deixou-as cair na pastelaria. Vim atrás de si para as devolver.
Fico a olhar para as chaves, exatamente aquelas que me fartei de procurar em vão dentro da bolsa.
Engulo em seco. Agora sinto-me extremamente envergonhada pelo que fiz.
O homem encosta-se à parede e desliza para o chão, sentando-se. Continua a tapar os olhos com as mãos.
Retiro uma garrafa de água da bolsa e estendo-lha.
— Use isto. Pode ser que ajude — digo, sentando-me ao seu lado.
Fico a vê-lo lavar os olhos com os dedos molhados. Parece-me abatido, e não apenas por ter acabado de ser atacado.
Há, contudo, uma questão que não me sai da cabeça.
— Como conseguiu entrar no prédio?
Ele olha para mim. Tem os olhos vermelhos mas já os consegue entreabrir.
— Moro aqui. — E aponta para a porta em frente à minha.
Fico boquiaberta. Não consigo acreditar que este homem é o meu vizinho do esquerdo, com quem eu nunca me tinha cruzado.
— Imagino que tenha ficado assustada quando a olhei fixamente no café — acrescenta.
— Sim — admito, em voz baixa.
— Peço desculpa. Não o devia ter feito. É só que… — hesita, como se lhe custasse falar do assunto. — Acho-a parecida com a minha noiva. Ela abandonou-me no dia do nosso casamento. Faríamos hoje um ano de casados. — Outra pausa. — Às vezes, parece-me que a vejo em todo o lado.
Olho-o em silêncio. Tenho andado tão centrada na minha dor, nos meus medos, na minha incapacidade de combater o pânico, que me esqueço que as outras pessoas também têm as suas cicatrizes.
Devagar, coloco a mão por cima do ombro dele. Puxo-o para mim. Acho que ele está a precisar de um abraço.
A ideia ficou bem engraçada. O que o medo pode fazer! Encrava-nos de uma forma que tolda a nossa visão.
ResponderEliminarFuncionou muito bem o teu conto.
Beijinhos
Obrigada! Este foi o que mais gostei de escrever; peguei numa ideia super simples e tentei divertir-me ao máximo!
EliminarBeijinhos
Olá, Daniela!
ResponderEliminarAdorei este conto. Está bem descrito, a ação é muito envolvente e deixaste pistas no início que me surpreenderam! Adoro como incluis backstory tão interessante em tão poucas palavras. Obrigada por teres participado, esperamos ver-te no último tema do desafio. :)
Um beijinho,
Elisabete.
Olá, Elisabete!
EliminarMuito obrigada pelas tuas palavras! Este foi o conto que mais gostei de escrever. :)
Beijinho,
Daniela
Olá Daniela!
ResponderEliminarEste conto está espetacular. Muito interessante. Gostei muito de ver como incluis-te a bagagem das personagens, com os detalhes necessários no sítio certo. Beijinhos 😘
Olá Vera!
EliminarMuito obrigada! Fico mesmo contente que tenhas gostado. Este foi também o que mais gostei de escrever. :)
Beijinhos