sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Desafio Atreves-te a Escrever? #Tema 2 | O estranho


[Desafio promovido pela Vera Barbosa e pela Elisabete Martins de Oliveira.]

 
Tema 2:
 
        O estranho
 
Novamente este rosto. Acho que estou a ser seguida.
 
Ele olha-me fixamente, sentado junto ao balcão da pastelaria.

Já o vi antes a rondar o apartamento. É por isso que o reconheço de imediato. É tão ruivo que parece que tem um fogo a arder em cima da cabeça.

Enfrento-o. Prendo o meu olhar no dele, tentando fazer a minha melhor expressão desafiante, tentando não demonstrar medo. Não posso entrar em pânico. Não agora. Não aqui.

Parece ter resultado porque ele desvia a atenção. Suspiro de alívio e termino o café. Limpo as migalhas do bolo de arroz que ainda persistem nos cantos da minha boca e volto a olhar na direção do balcão. Estremeço.

Ele está novamente a fixar-me. Que raio pretende de mim?

Não devia ter saído de casa.

O meu coração faz ruído dentro do meu peito. Levanto-me depressa e agarro a bolsa. A alça está presa nas costas da cadeira e, ao puxá-la com força, ela revira-se e metade do seu conteúdo cai ao chão num grande estrondo. Agacho-me e apresso-me a apanhar todos os meus pertences. Estou a tremer.

Retiro cinco euros da carteira e deixo a nota em cima da mesa, saindo tempestuosamente dali.

Mesmo antes de virar a esquina, consigo ver pela janela que o homem também se levantou e se aproxima da saída.

Oh meu Deus, ele vem mesmo atrás de mim.

Apresso o passo, apertando a bolsa bem junto ao corpo.

Não devia ter saído de casa. Não devia ter dado ouvidos à minha terapeuta. Disse-me que não era normal ficar quatro meses fechada em casa e que algum dia teria de enfrentar o mundo. Comece com algo pequeno, dissera, vá ao supermercado, vá lanchar a uma pastelaria, visite a biblioteca. O que raio sabe ela? Segui o seu conselho e agora estou a ser perseguida. Vai tudo repetir-se outra vez.

Enquanto caminho, vou olhando para trás. Não o vejo. Terá desistido? Ou seguiu por algum atalho para me surpreender?

Esse pensamento alarma-me. Onde estará ele?

Viro à direita. É então que o vejo lá atrás a dobrar a esquina. Sem pensar duas vezes, desato a correr. Ainda posso despistá-lo.

As pernas tremem-me e sinto-me ofegante. Quase não consigo respirar. As pessoas olham para mim como se eu fosse louca.

Falta-me apenas uma rua, mas já vejo a fachada do meu apartamento. Estou quase lá.

Olho para trás e vejo que ele ganhou balanço. Está a correr. Atrapalho-me e quase caio.

Chego à porta do prédio, encontro-a entreaberta e entro de rompante. Atiro-a para trás com força para que se feche.

Estou quase em segurança. Paro em frente ao elevador e carrego no botão. Ao olhar para a rua, o coração quase me salta do peito. O homem está parado junto ao prédio. Ele não vai entrar, pois não? Não pode, precisaria das chaves.

Ainda não estou em segurança. Desisto de esperar pelo elevador e corro escadas acima. São dezenas até ao terceiro andar, mas eu sou capaz. Tenho de ser.

Quando chego lá acima, o meu coração parece estar num campeonato de saltos acrobáticos.

Faço mais um esforço e percorro o corredor até à porta do meu apartamento. Debruço-me sobre a minha bolsa e procuro as chaves.

É nesse momento que oiço a campainha do elevador. Sinto-me gelar. Olho naquela direção e, quase em câmara lenta, vejo as portas a abrirem-se. Fico petrificada quando uma cabeleira ruiva sai de lá de dentro.

Este é o meu pior pesadelo.

Continuo a vasculhar a bolsa. Onde raio meti as chaves?

A sola dos seus sapatos ecoa pelo corredor à medida que ele se aproxima. Estou tão consciente desse barulho como das gotas de suor que me escorrem pelas têmporas.

— Desculpe, perdeu as chaves?

Estou tão alterada que nem entendo as suas palavras. Decido agir. Desta vez, vai ser diferente, serei capaz de me defender.

Viro-me e fito-o corajosamente. À minha frente só vejo sangue. Vejo os rufias a rodearem-me e a navalha a espetar-se na minha barriga.

Atiro-me a ele, apanhando-o de surpresa, e borrifo-o com o spray de pimenta que retirei da bolsa.

Ele grita e dá um passo atrás, levando as mãos à cara.

— Mas que raio! Porque é que fez isso? — pergunta.

— Afaste-se de mim!

— Só lhe perguntei se perdeu as chaves. — Ele leva a mão esquerda ao bolso, tira umas chaves ruidosas e atira-mas. — Deixou-as cair na pastelaria. Vim atrás de si para as devolver.

Fico a olhar para as chaves, exatamente aquelas que me fartei de procurar em vão dentro da bolsa.

Engulo em seco. Agora sinto-me extremamente envergonhada pelo que fiz.

O homem encosta-se à parede e desliza para o chão, sentando-se. Continua a tapar os olhos com as mãos.

Retiro uma garrafa de água da bolsa e estendo-lha.

— Use isto. Pode ser que ajude — digo, sentando-me ao seu lado.

Fico a vê-lo lavar os olhos com os dedos molhados. Parece-me abatido, e não apenas por ter acabado de ser atacado.

Há, contudo, uma questão que não me sai da cabeça.

— Como conseguiu entrar no prédio?

Ele olha para mim. Tem os olhos vermelhos mas já os consegue entreabrir.

— Moro aqui. — E aponta para a porta em frente à minha.

Fico boquiaberta. Não consigo acreditar que este homem é o meu vizinho do esquerdo, com quem eu nunca me tinha cruzado.

— Imagino que tenha ficado assustada quando a olhei fixamente no café — acrescenta.

— Sim — admito, em voz baixa.

— Peço desculpa. Não o devia ter feito. É só que… — hesita, como se lhe custasse falar do assunto. — Acho-a parecida com a minha noiva. Ela abandonou-me no dia do nosso casamento. Faríamos hoje um ano de casados. — Outra pausa. — Às vezes, parece-me que a vejo em todo o lado.

Olho-o em silêncio. Tenho andado tão centrada na minha dor, nos meus medos, na minha incapacidade de combater o pânico, que me esqueço que as outras pessoas também têm as suas cicatrizes.

Devagar, coloco a mão por cima do ombro dele. Puxo-o para mim. Acho que ele está a precisar de um abraço.

6 comentários:

  1. A ideia ficou bem engraçada. O que o medo pode fazer! Encrava-nos de uma forma que tolda a nossa visão.
    Funcionou muito bem o teu conto.
    Beijinhos

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    1. Obrigada! Este foi o que mais gostei de escrever; peguei numa ideia super simples e tentei divertir-me ao máximo!

      Beijinhos

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  2. Olá, Daniela!
    Adorei este conto. Está bem descrito, a ação é muito envolvente e deixaste pistas no início que me surpreenderam! Adoro como incluis backstory tão interessante em tão poucas palavras. Obrigada por teres participado, esperamos ver-te no último tema do desafio. :)
    Um beijinho,
    Elisabete.

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    1. Olá, Elisabete!
      Muito obrigada pelas tuas palavras! Este foi o conto que mais gostei de escrever. :)

      Beijinho,
      Daniela

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  3. Olá Daniela!
    Este conto está espetacular. Muito interessante. Gostei muito de ver como incluis-te a bagagem das personagens, com os detalhes necessários no sítio certo. Beijinhos 😘

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    1. Olá Vera!
      Muito obrigada! Fico mesmo contente que tenhas gostado. Este foi também o que mais gostei de escrever. :)

      Beijinhos

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Obrigada pelo teu comentário e pelo tempo que dedicaste a ler o que escrevi!