sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Desafio de Escrita dos Pássaros #2.1 | O salto


Tema: Acho que a coisa não vai correr bem

          O salto

Estou aterrorizada.

Olho para baixo, por cima das grades de metal, e tento calcular a distância entre os meus pés e a água salgada. Diria que serão mais de quarenta metros mas não consigo precisar.

Do local onde me encontro, a água revela-se demasiado escura, embora se veja um leve brilho provocado pelo embate dos raios solares.

Nunca o rio me pareceu tão intimidador. Mas, para ser sincera, também é a primeira vez que o fito deste exato local, enquanto pondero atirar-me da ponte.

Todo o meu corpo treme. As minhas mãos estão pegajosas e suadas. Os meus joelhos fraquejam. O sangue corre depressa demais pelas minhas veias.

Não sei o que me passou pela cabeça para me desafiar a fazer bungee jumping. Na verdade, quando redigi a lista das “dez coisas a fazer antes de morrer”, nunca pensei que chegasse tão depressa ao último item. Acreditei que simplesmente não teria tempo. É pessimista pensar desta forma, eu sei, mas esta lista foi a primeira coisa que escrevi assim que cheguei ao carro, depois do médico me dar o diagnóstico que ninguém quer ouvir.

Agora, volvidos quase dois anos, acho que toda aquela quimioterapia me fritou o cérebro.

Sinto agitação à minha volta. Oiço alguém dizer que está tudo pronto. Olho por mim abaixo. Vejo um emaranhado de cordas. Um arnês rodeia-me a cintura. O capacete pesa-me na cabeça. Estou pronta para a guerra.

Acho que a coisa não vai correr bem, penso. Mas depois apercebo-me de que devo ter falado em voz alta, porque a mão do meu namorado agarra a minha e oiço a voz dele a sussurrar-me ao ouvido.

— Vai correr tudo bem! É o último item da tua lista.

Ele está claramente mais animado do que eu. Nunca viu esta lista como algo fatalista, mas sim como um conjunto de objetivos em que nos podíamos concentrar durante o combate à doença.

Dou alguns passos em frente, percorrendo a plataforma de madeira que me dá acesso à aventura. Sinto a adrenalina a envolver-me. E finalmente salto…


Acordo suavemente e olho para o relógio. Nove horas. Todos os dias acordo à mesma hora. E todos os dias pego na fotografia com as minhas mãos enrugadas, olho para o meu rosto jovem e feliz e recordo aquele dia longínquo em que dei o salto.

Sorrio porque sobrevivi.

20 comentários:

  1. Nunca fiz uma lista dessas. Mas será uma coisa a pensar.
    Quanto ao texto... muito bom.
    Parabéns!

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    1. Também nunca fiz, embora já tenha redigido uns tópicos de coisas que gostaria de fazer. :)

      Obrigada!

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  2. Gostei da esperança que as palavras do teu texto deixa transparecer. Muito bem escrito :).
    Beijinhos

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    1. Obrigada! Foi isso mesmo que eu quis transmitir, um pouco de esperança, que faz falta a todos nós! :)

      Beijinhos

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    2. Belíssimo texto! Adorei.

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  3. adorei :D tão bem escrito e descrito e com um final maravilhoso. lindo, lindo, lindo. feliz dia, querida. beijinhos <3

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    1. Ohh, muito obrigada <3, vocês deixam-me sem jeito!
      Fico contente que tenhas gostado!

      Beijinhos e bom domingo!

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  4. Saltar para o vazio é tão maravilhoso, mesmo que todos os dias o façamos de forma inconsciente!
    Adorei o texto :)

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    1. É verdade, todos os dias damos um pequeno salto, talvez nem sempre tão intenso como o da personagem. :)
      Obrigada!

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  5. As coisas que mais ficam são aquelas que nos fazem ultrapassar quem julgávamos ser. Parabéns, eu era incapaz ")

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  6. Estou atrasada na leitura dos textos. Só agora é que cheguei aqui 🤔. Adorei esta história que até correu bem.

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    1. Obrigada! Não há problema pelo atraso, eu própria também tento ir lendo todos os dias alguns textos, pois não consigo ler todos de uma só vez. :)
      Beijinhos

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Obrigada pelo teu comentário e pelo tempo que dedicaste a ler o que escrevi!