Tema: Não tenho tempo para te aturar.
O observador
Ajustou os binóculos em frente ao rosto e dirigiu o olhar até à janela do apartamento do terceiro andar onde ela entrara há menos de dez minutos. Seguira-a cautelosamente, percorrendo toda a distância que separava o hospital onde ela trabalhava do apartamento no centro da cidade.
Era fácil passar despercebido. Fazia-o há semanas e, a cada dia que passava, tornava-se melhor.
Encontrava-se resguardado por entre uns arbustos. Se alguém passasse ali e estranhasse o seu comportamento, bastar-lhe-ia apontar para a máquina fotográfica e os binóculos, enquanto murmurava «pássaros» com um ligeiro sorriso. Ninguém estaria muito interessado num observador de pássaros.
Concentrou-se na janela onde julgou ver uma sombra. A noite ainda não começara a cair, pelo que ela não acendera as luzes. Viu o contorno do seu corpo atravessar lentamente a janela, da esquerda para a direita, em direção à casa de banho. Sabia que ela tomava banho sempre que chegava a casa do trabalho. Imaginou-a a despir-se. Será que o fazia na casa de banho, como quando viviam juntos? Ou passara a fazê-lo no quarto, percorrendo depois o pequeno corredor, nua, em direção ao duche?
Sentiu-se desconfortável e mudou a posição do corpo.
A verdade é que ela era uma ingrata. Dedicara-lhe quase dois anos da sua vida, submetendo-se a todas as suas vontades e venerando-a como uma deusa, e ela limitara-se simplesmente a descartá-lo. «O problema não és tu, sou eu. Preciso de tempo», dissera-lhe, «Preciso de me concentrar apenas no trabalho». E, num outro dia, numa discussão mais acesa, gritara-lhe: «Não tenho tempo para aturar as tuas crises de ciúmes».
Ingrata.
Depois de tudo o que ele fizera por ela, de todo o tempo que lhe dedicara.
Ciúmes…
Era assim tão errado querê-la só para si? Querer poupá-la aos olhares esfaimados dos outros homens que não conheciam a sua essência? Que apenas queriam possuir o seu corpo?
Segurou com mais força os binóculos. Sentiu na boca o sabor quente a metal. Mordera o lábio com tanta força que este começara a sangrar.
Voltou-lhe à mente a imagem dela nua, no banho, a água a escorrer-lhe pela pele e um sorriso de prazer a contornar-lhe os lábios.
Baixou os binóculos, furiosamente. As mãos tremiam-lhe.
«Se não podes ser minha», pensou, «não serás de mais ninguém».
Olhou para o relógio e enfiou os binóculos dentro da mochila. Do interior retirou uma pequena arma de metal. Prendeu-a no cós das calças e ajustou a casaca de ganga, de forma a que não se visse nada.
Atravessou rapidamente a estrada. Chegou ao prédio e tirou do bolso a chave. Sorriu. Ainda a tinha, embora já não vivesse ali há várias semanas.
Entrou descontraidamente, não fosse o caso de se cruzar com algum dos moradores. Subiu as escadas em passo rápido, só parando em frente à porta do apartamento dela.
Sem hesitação, bateu.
Ouviu a voz dela após alguns segundos.
— Quem é?
— Sou eu. — Olhou em frente, sabendo que ela estaria do outro lado da porta, a espreitar pelo visor. — Preciso de falar contigo.
Uma pausa, antes de ouvir novamente a voz.
— Acho que já não temos nada a dizer um ao outro.
— Por favor. Dá-me apenas cinco minutos. Deves-me isso.
Por momentos, não teve a certeza de que ela lhe abriria a porta, mas logo a seguir ouviu o barulho do ferrolho a ser retirado.
Levou a mão à arma, preparando-se.
No momento em que a porta começou a abrir-se, atirou-se contra ela, empurrando-a com o corpo e enfiando-se dentro do apartamento em menos de um suspiro.
Ela recuou, assustada. Antes que tivesse tempo de perceber o que tinha acontecido, ele apontou-lhe a arma, fechando a porta com o pé.
— Por favor... — gemeu ela.
Viu a cor fugir-lhe do rosto, ao mesmo tempo que se apercebia que ela usava apenas um leve roupão. Ia a caminho do banho.
Por um segundo, vacilou. Mas rapidamente se recompôs. Não, desta vez não iria ser escravo da sedução dela.
Deu um passo em frente.
— Acho que vais precisar de tempo para me aturar — disse.
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