Tema: Tive uma ideia!
A confissão
A compreensão atingiu-me durante a madrugada, em mais uma das minhas noites de insónias. Raramente conseguia dormir mais de três horas por noite. O medo não me deixava. Nem o roncar do meu marido.
Permaneci deitada, os olhos cansados fixos na escuridão. Percebi que chegara o dia. Por favor, não me julguem pelo que estou prestes a fazer. Por vezes, fazemos o que temos de fazer. Não pensamos. Só queremos sobreviver.
Após cinco tentativas falhadas para fugir dele, desisti. Ou pelo menos mentalizei-me de que não era capaz. Ele tornava-se mais agressivo a cada uma das minhas tentativas. Percebi que aquele não era o caminho e mostrei-me mais dócil, mais obediente. Ele recompensou a minha mudança. Deixou de me bater com tanta frequência e começou a deixar-me sair de casa com ele, em pequenos passeios.
Mas tudo mudou quando me deparei com uma nova oportunidade. Gostava de poder dizer que a ideia partira de mim. Gostava de me ter sentido iluminada. Gostava de ter sido eu a exclamar: «Tive uma ideia!».
Mas não aconteceu nada disso. A ideia não era minha. Mas podia salvar-me.
Naquela manhã, fiz a minha rotina habitual. Tomei banho e arranjei-me, fazendo questão de disfarçar o corte no lábio que ele me provocara duas noites antes e que ainda me doía. Ele não gostava de ver em mim as marcas das suas agressões.
Passei mais de duas horas na cozinha, tentando esmerar-me no guisado de cabrito e no bolo que apresentaria como sobremesa. Tinha de sair tudo perfeito.
Quando a mãe dele chegou, fomos almoçar. Como quase sempre acontecia, tornei-me invisível perante a atenção desmesurada que ele dava à mãe. Mas desta vez não me importei. Estava a esforçar-me ao máximo para que ninguém reparasse na tremura das minhas mãos.
O bolo de laranja e chocolate fitava-me, ameaçador, do alto da sua travessa. Ele sabia o que eu havia feito.
Assim que todos terminaram a refeição, levantei os pratos sujos da mesa e coloquei o bolo mesmo ao centro.
A minha sogra sorriu para mim e pediu:
— Parte-me uma fatia bem gorda, minha querida.
Obedeci. Não era um pedido estranho. Ela costumava adorar os meus bolos.
Contudo, desta vez senti-me aterrorizada. Não havia como voltar atrás.
Ela pegou no bolo com a mão direita e abocanhou quase metade da fatia, ignorando o garfo e a faca de sobremesa que eu colocara junto ao prato.
Tentei fechar os olhos mas não fui capaz. Era como se me tivessem arrancado as pálpebras.
Tudo aconteceu numa fração de segundos. Enquanto mastigava o grande pedaço de bolo, os seus olhos começaram a lacrimejar. Foi com horror que a vi agarrar-se à garganta, como se estivesse engasgada. Ou sufocada.
— O que se passa? — perguntou o meu marido, levantando-se bruscamente da mesa. — Mãe?
A reação dela era agora mais exagerada. Fazia ruídos estranhos com a garganta e os lábios começavam a inchar.
Ele olhou-me desconfiado, o ódio que eu tantas vezes vira no seu olhar. Levou à boca um pedaço de bolo do prato da mãe e identificou de imediato o problema.
— Amendoim — sussurrou. — Minha grandessíssima cabra!
Aproximou-se de mim e esmurrou-me, atirando-me ao chão. Por pouco não bati com a cabeça na perna da mesa, mas senti-me atordoada.
Vi-o agarrar a mãe, mais aflita a cada minuto que passava, e levá-la para fora de casa. Pouco depois ouvi o som do carro a afastar-se.
Levantei-me, ainda a tremer. Dirigi-me à casa de banho e vasculhei o cesto da roupa suja até encontrar a mochila que escondera no dia anterior. Era o único local da casa que ele não controlava.
Caminhei até à porta que dava para a rua e suspirei de alívio quando percebi que, com a atrapalhação de socorrer a mãe, ele se esquecera de a trancar.
Abri-a e contemplei a liberdade. Comecei a correr. Fugi sem olhar para trás. A minha visão toldava-se de lágrimas à medida que me recordava daquele dia, apenas duas semanas antes, em que a minha sogra me agarrara a mão, fixando-me o olhar e sussurrando, como se me desse uma ordem: «sou alérgica ao amendoim».
Abri-a e contemplei a liberdade. Comecei a correr. Fugi sem olhar para trás. A minha visão toldava-se de lágrimas à medida que me recordava daquele dia, apenas duas semanas antes, em que a minha sogra me agarrara a mão, fixando-me o olhar e sussurrando, como se me desse uma ordem: «sou alérgica ao amendoim».
Sem comentários:
Enviar um comentário
Obrigada pelo teu comentário e pelo tempo que dedicaste a ler o que escrevi!